Dizem que a rosa simboliza a “feminilidade”, a
delicadeza. É a mesma metáfora que usam para coibir nossa sexualidade — da
supervalorização da virgindade é que saiu o verbo “deflorar” (como se o homem,
ao romper o hímen de uma mulher, arrancasse a flor do solo, tomando-a para si e
condenando-a – afinal, depois de arrancada da terra, a flor está fadada à
morte). É da metáfora da flor, portanto, que vem a idéia de que mulheres
sexualmente ativas são “putas”, inferiores, menos respeitáveis.
A delicadeza da flor também é sua fraqueza. Qualquer
movimento mais brusco lhe arranca as pétalas. Dizem o mesmo de nós:
que somos o “sexo frágil” e que, por isso, devemos ser protegidas. Mas
protegidas do quê? De quem? A julgar pelo número de estupros , precisamos de proteção contra os
homens. Ah, mas os homens que estupram são psicopatas, dizem. São loucos. Não é
com estes homens que nós namoramos e casamos, não é a eles que confiamos a
tarefa de nos proteger. Mas, bem, segundo pesquisa
Ibope/Instituto Patricia Galvão, 51% dos brasileiros dizem conhecer alguma mulher que é agredida
por seu parceiro . No resto do mundo, em 40 a 70 por cento dos assassinatos de mulheres, o autor
é o próprio marido ou companheiro .Este tipo de crime
também aparece com frequência na
mídia. No entanto, são tratados como crimes “passionais” – o que dá a
errônea impressão de que homens e mulheres os cometem com a mesma frequência,
já que a paixão é algo que acomete ambos os sexos. Tratam os homens autores destes
crimes como “românticos” exagerados, príncipes encantados que foram longe demais . No
entanto,são
as mulheres as neuróticas nos filmes e novelas . São elas que
“amam demais”,não os homens .
Mas a rosa também tem espinhos, o que a torna ainda mais
simbólica dos mitos que o patriarcado atribuiu às mulheres. Somos ardilosas,
traiçoeiras, manipuladoras, castradoras. Nós é que fomos nos meter com a
serpente e tiramos o pobre Adão do paraíso (como se Eva lhe tivesse enfiado
a maçã goela abaixo, como se ele não a tivesse comido de livre e
espontânea vontade). Várias culturas têm a lenda da vagina
dentata . Em Hollywood, as mulheres usam a “sedução” para prejudicar
os homens e conseguir o que querem. Nos intervalos do canal Sony, os machos são
de “respeito” e as mulheres têm “mentes perigosas”. A mensagem
subliminar é: “cuidado, meninos, as mulheres são o capeta disfarçado”. E,
foi com medo do capeta que a sociedade, ao longo dos séculos, prendeu
as mulheres dentro de casa. Como se isso não fosse suficiente, limitaram
seus movimentos com espartilhos, sapatos minúsculos (na China), saltos
altos. Impediram-na que estudasse, que trabalhasse, que tivesse vida própria.
Ela era uma propriedade do pai, depois do marido. Tinha sempre de estar sob a
tutela de alguém, senão sua “mente perigosa” causaria coisas terríveis.
Mas dizem que a rosa serve para mostrar que, hoje,
nos valorizam. Hoje, sim. Vivemos num mundo “pós-feminista” afinal. Todas essas
discriminações acabaram! As mulheres votam e trabalham! Não há mais nada
para conquistar! Será mesmo? Nos últimos anos, as diferenças salariais entre homens e mulheres (que seguem as
mesmas profissões) têm crescido no Brasil, em vez de
diminuir. Nos centros urbanos, onde a estrutura ocupacional é mais
complexa, a disparidade tende a ser pior .
Considerando que recebo menos para desempenhar o mesmo serviço, não parece
irônico que o meu colega de trabalho me dê os parabéns por ser
mulher?
Dizem que a rosa é um sinal de reconhecimento das nossas
capacidades. Mas, no ranking de igualdade política do Fórum Econômico
Mundial de 2008, o Brasil está em 10oº lugar entre 130 países . As
mulheres têm 11% dos cargos ministeriais e 9% dos assentos no Congresso — onde,
das 513 cadeiras, apenas 46 são ocupadas por elas. Do total de prefeitos
eleitos no ano passado, apenas 9,08% são mulheres . E nós somos 52% da
população.
A rosa também simboliza beleza. Ah, o sexo belo. Mas é só
passar em frente a uma banca de revistas para descobrir que é exatamente o contrário.
Você nunca está bonita o suficiente, bobinha. Não pode ser feliz enquanto não
emagrecer. Não pode envelhecer. Não pode ter celulite (embora até bebês
tenham furinhos na bunda). Você só terá valor quando for igual a uma modelo de
18 anos (as modelos têm 17 ou 18 anos até quando a propaganda é de creme
rejuvenescedor…). Mas mesmo ela não é perfeita: tem de ser
photoshopada. Sua pele é alterada a ponto de parecer de
plástico: ela não tem espinhas nem estrias nem olheiras nem
cicatrizes nem hematomas, nenhuma dessas coisas que a gente tem quando vive.
Ela sorri, mas não tem linhas ao lado da boca. Faz cara de brava, mas sua testa
não se franze. É magérrima (às vezes, anoréxica), mas não tem nenhum osso
saltando. É a beleza impossível, mas você deve persegui-la mesmo assim, se
quiser ser “feminina”. Porque, sim, feminilidade é isso: é “se cuidar”.
Você não pode relaxar. Não pode se abandonar (em inglês, a expressão
usada é exatamente esta: “let yourself go”). Usar uma porrada de cosméticos e
fazer plásticas é a maneira (a única maneira, segundo os
publicitários) de mostrar a si mesma e aos outros que você se ama.
“Você se ama? Então corrija-se”. Por mais contraditória que pareça, é esta
a mensagem.
Todo dia 8 de março, nos dão uma rosa como sinal de respeito.
No entanto, a misoginia está em toda parte. Os anúncios e ensaios de
moda glamurizam a violência contra a mulher . Nas propagandas de cerveja e programas
humorísticos, as mulheres são bundas ambulantes, meros objetos sexuais. A
pornografia mainstream (feita pela Hollywood pornô, uma indústira
multibilionária) tem cada
vez mais cenas de violência, estupro e simulação de atos sexuais
feitos contra a vontade da mulher. Nos videogames, ganha pontos quem
atropelar prostitutas.
Todo dia 8 de março, volto para casa e vejo um monte de
mulheres com rosas vermelhas na mão, no metrô. É um sinal de cavalheirismo,
dizem. Mas, no mesmo metrô, muitas mulheres são encoxadas todos os dias. Tanto
que o Rio criou um vagão exclusivo para as mulheres, para que elas fujam de
quem as assedia. Pois é, eles não punem os responsáveis. Acham difícil.
Preferem isolar as vítimas. Enquanto não combatermos a idéia de
que as mulheres que andam sozinhas por aí são “convidativas”, propriedade
pública, isso nunca vai deixar de existir. Enquanto acharem que cantar uma mulher na rua é elogio ,
isso nunca vai deixar de existir. Atualmente, a propaganda da NET mostra um
pinguim (?) dizendo “ê lá em casa” para uma enfermeira. Em outro
comercial, o russo garoto-propaganda puxa três mulheres para perto de si, para
que os telespectadores entendam que o “combo” da NET engloba três serviços.
Aparentemente, temos de rir disso. Aparentemente, isso ajuda a vender TV por
assinatura. Muito provavelmente, os publicitários criadores desta peça não
sabem o que é andar pela rua sem ser interrompida por um completo desconhecido
ameaçando “chupá-la todinha”.
Então, dá licença, mas eu dispenso esta rosa. Não
preciso dela. Não a aceito. Não me sinto elogiada com ela. Não quero
rosas. Eu quero igualdade de salários, mais representação política, mais
respeito, menos violência e menos amarras. Eu quero, de fato, ser igual na
sociedade. Eu quero, de fato, caminhar em direção a um mundo em que o feminismo
não seja mais necessário.
…Enquanto isso não acontecer, meu querido, enfia esta rosa
no dignissímo senhor seu..”.